Numa insólita enchente o encantamento acontece: Sapatos que falam estendem as mãos (ou seriam os pés?) para um menino flagelado. Então, solidão e solidariedade, desespero e esperança, Sul e Norte, esquerdo e direito, individual e coletivo, real e imaginário, como se fossem antigos amigos, promovem a comunhão dos opostos e o clarão de um olhar renovado. E para completar, ternura e poesia também enlaçam as mãos e movimentam sentidos e sentimentos, numa cantiga final.

Entre nesta história, leitor de tantas idades. Editora, escritora e ilustradora estendem mãos para você.

 

 

Reedição no prelo da editora Paulus.

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O livro O Sapato falador sendo encenado pelo grupo de teatro Cena Hum, de Curitiba:

O grupo de teatro Cena Hum, de Curitiba, encenando O Sapato Falador, livro de Gloria Kirinus.

 

 


 

PORQUE SAPATOS TAMBÉM FALAM
por Nic Cardeal

O SAPATO FALADOR (São Paulo: Cortez, 2008) é um livro infantojuvenil escrito por GLORIA KIRINUS e lindamente ilustrado por Simone Matias, que conta a história de um menino e de seu sapato que fala!

Diz a incrível escritora Gloria que uma vez choveu tanto, tanto, tanto, que a chuva, que era pra ser só uma chuvinha de nada, virou logo e muito ligeiro uma grande chuvarada! Só que essa chuvarada continuou chovendo, e então essa mesma chuvarada virou uma enorme inundação, alagando casas, afogando móveis e até brinquedos, conforme lhe contou um menino que viveu aquilo tudo bem de pertinho!

A chuva foi tanta que levou embora até os sorrisos, as alegrias e as esperanças de toda aquela gente que morava tanto tempo ali que já estava até virando semente! Não teve misericórdia nenhuma aquela chuva de fazer história: cobriu os campos, os cantos, os montes e os telhados – de casa em casa, de rua em rua – levando pra distante cada pedaço de tranqueira, deixando todo mundo assim meio que bêbado de tanta água – literalmente “(…) em seu lugar deixou só gente de cara lavada (…)” (2008, p. 7)!

Disse o tal menino pra Gloria que não ficou ninguém em nenhuma casa, foram todos juntinhos levados para um grande casarão, porque foi a única construção a se manter de pé bem firme desde o chão, enfrentando rios e águas, tempestades e cascatas – era bem forte esse senhor tal de casarão! A notícia correu mundo e todo o povo do casarão saiu na TV: os tais flagelados do sul bem molhados, famintos e descuidados!

O menino também disse que de repente todo aquele mundo de gente ouviu um forte estrondo despencando lá dos céus! Desolados, acharam os pobres coitados que era mais um trovão daqueles, de trazer mais água, sempre água, muita água… Mas qual não foi a surpresa toda cheia de alegria! O barulho era do motor de um helicóptero, verdadeiro espetáculo descendo dos céus feito um grande furacão! Veio todo faceiro o tal do helicóptero ligeiro, jogando do alto muitos mantimentos pra matar a fome, o frio e a sede de todo o povo do casarão!

O menino era só felicidade ao contar pra nossa querida Gloria essa história registrar: “(…) Façam fila! As crianças em primeiro lugar. Agasalhos e alimentos para todos vão chegar (…)” (2008, p. 11). Mas esse menino tinha outra razão muito mais especial pra estar tão radiante a narrar toda essa tal de ‘contação’ – não é que ele ganhou um sapato novinho em folha pra calçar seus pés descalços e molhados de tanta chuva? Além disso, qual não foi sua surpresa ao encontrar um bilhete dentro do seu sapato-presente: “(…) Para você, caro amigo, meu  SAPATO FALADOR (…)” (2008, p. 12).

O menino, desconfiado, achou que era brincadeira do outro menino que havia lhe enviado um sapato tão cuidado: “(…) – Engraçadinho esse menino, deve ser rico e levado. Como acreditar que um sapato possa de fato falar? (…)” (2008, p. 12). Mas sua desconfiança durou pouco, muito pouco, pouco mesmo, porque imediatamente um sapato após o outro falaram quase juntos e bem alto: “(…) – Falo, sim – exclamou o Direito. – Falamos –  o Esquerdo corrigiu.  – Sim, falamos – ao mesmo tempo falaram ambos (…)” (2008, p. 14). O menino, ainda assustado, calçou os sapatos e levantou maravilhado, agora poderia conversar com seus sapatos, brincar, bagunçar  e se divertir, e esquecer um pouco aquela tristeza todinha molhada…

‘Interessante é que cada sapato era de um jeito tão do seu jeito’, disse o menino pra sua contadora de histórias! O Direito era todo bem direito, não gostava de bagunça, mas o Esquerdo… pra ele sempre tinha um jeito de fazer uma baguncinha divertida e das boas! O menino ficou todo feliz, bem calçado no meio de tanta criança descalça, com dois amigos falantes  literalmente aos seu pés!

Os dias foram passando e a chuva não passava…

‘ – E eu me sentindo tão diferente, Dona Gloria… porque eu tinha um sapato falador, enquanto as outras crianças todas descalças…Até que um dia acordei assustado com o meu sapato Esquerdo me chamando de sobressalto’, contou o menino todo bem calçado: “(…) Acorda, acorda, preguiçoso! Achei um achado, um colosso! (…)” (2008, p. 23). ‘O sapato Esquerdo me pegou pelo pé e me levou com ele lá pra fora onde tinha muita lama e muitos caminhões atolados. Nós nos divertimos a valer no meio de tanta lama e dizeres de caminhões muito engraçados!’

‘Então uma frase me tocou o coração, Dona Gloria! Dizia bem assim aquele letreiro de caminhão: “Todos os homens nasceram para ser livres e iguais entre si” (2008, p. 24). Sabe, olhei pro meu sapato falador e me senti desigual, fiquei triste, não sorri… Voltei cabisbaixo pro casarão e enquanto eu pensava na frase que da minha cabeça não largava, os dois sapatos ficaram um bocadinho de tempo cochichando lá no cantinho e me olhando de olhos baixinhos, baixinhos… Até que os dois vieram se aproximando devagarinho, pé ante pé (digo, sapato ante sapato!), e sabe o que me revelaram, senhora contadora dessa história? Ah, mas vou lhe contar bem baixinho, pra senhora escrever direitinho tudo aí!’

Pra saber o final da história desse sapato tão animado, você precisa correr ligeiro até a livraria mais próxima pra saber se o tal calçado falador ainda está descansando por ali, porque, de fato, ele é tão faceiro e gosta tanto de visitas que…sabe lá se ele já partiu pra ir fazer festa com outra criançada lá distante no nordeste ou, quem sabe, foi brincar com os meninos ribeirinhos da floresta!

Uma coisa é bem certa: esse sapato veio bem a calhar pro menino flagelado – estendeu a mão (digo, o pé) num momento mais precisado pra quem perdeu tudo e ficou sem nada – nem sapato!

Tem outra coisa muito importante nessa história de um sapato que ‘fala pelos cotovelos’ (ou seria pelas gáspeas?): ele ajuda a criançada a dar valor à alegria, à solidariedade, à ternura e à esperança! Também ensina o respeito às diferenças: o direito e o esquerdo, o claro e o escuro, a noite e o dia, o sozinho e o misturado, a criança e a criançada! E que um oposto não é ruim – é apenas o outro lado da mesma moeda que você joga lá pro alto! Como quando você fecha os olhos e olha ‘por dentro’, ou quando abre os olhos e ‘olha por fora’!

Vale a pena ler pra criançada a história do menino que tem a sorte de ganhar um sapato falador, e que depois conta tudo para a ‘Gloria contadora de histórias’!

 


 

Uma trágica enchente e a magia de um par de sapatos “faladores”, desfilam ante os nossos olhos pelo prisma de um menino que, em versos, faz a urdidura do real e do sonho e do poético, transformando a experiência em ficção, revelando a plenitude de uma sensibilidade incomum e de uma imaginação comovedora.

Elisa Campos de Quadros